sábado, março 06, 2004

João Luiz,
Achei q vc, como pintor e artista gráfico, se interessaria sobremaneira por este assunto. O texto a seguir é tréplica a um comentário sobre um comentário meu sobre o texto "O Dever do Escritor de Literatura" no blog do Alexandre Cruz Almeida. O comentário q suscitou esta tréplica foi duma leitora: "Escritor (ou o artista em geral) não tem sorte, tem talento. E isso não é para qq um. Não se aprende na escola. Nascemos com ou sem ele."

TALENTO E SORTE
"Don't clap too loudly: it's a very old world." Tom Stoppard, mais uma vez

A principal característica do artista não é o talento. É a sorte. Talento todo mundo tem, pra alguma coisa. Pensar numa pessoa sem talento é como pensar num violão sem cordas. Guardando as proporções, a variedade de talentos é análoga à variedade de cordas: alguns tipos delas soam melhor em alguns modelos de violões (ou guitarras!) e não em outros; pra alguns estilos de música e não pra outros; com algumas técnicas de dedilhado e não com outras; e assim por diante.

A sorte do artista é uma questão de acessibilidade. Vou falar de três tipos de acesso: (1) acesso ao próprio talento, (2) acesso aos meios; e (3) acesso do público à produção do artista.

(1) ACESSO AO PRÓPRIO TALENTO
O acesso ao próprio talento é derivado da sorte de viver em lugar e época apropriados. ¿Qtos jovens foram trucidados durante as Cruzadas sem saber q tinham um talento incomum prà informática? ¿Qtos párias vivem hoje mesmo na Índia sem a menor idéia de q poderiam ter sido gênios da dramaturgia elizabetana? ¿Qtas pessoas com percepção espacial perfeitamente afinada pra dançar nasceram aleijadas? ¿Qtos pivetes cheiram cola em SPaulo estragando a cada fungada suas chances de se revelar mestres culinários? ¿Qtos chineses nascem diariamente e nunca perceberão q poderiam ter fama e fortuna como sambistas de morro? ¿Qtas e qtas mulheres na história tinham o cérebro exatamente talhado pra revolucionar a física nuclear? ¿Qtos artistas potencialmente geniais tinham características pessoais detestáveis, ou por motivos culturais não gostavam de seus talentos? ¿Qtos artistas em potencial simplesmente não descobriram seu talento porque um certo dia aos 9 anos de idade entraram à direita numa bifurcação e não à esquerda?

São todas perguntas sem resposta; e por um motivo prosaico: só se conhece o q se torna público, fato este pouco reconhecido entre os idólatras e bajuladores de gênios, entre os q vêem singularidade onde só há contingência.

A sorte do artista ou cientista no acesso ao próprio talento torna-se ainda mais evidente qdo alguém escapa fantasticamente do azar, sina da maioria. É o caso do matemático indiano Srinivasa Ramanujan, q morreu em 1920 aos 33 anos. Ramanujan tinha um talento particular pra intuitivamente descobrir relações complexíssimas entre números. Era um menino de classe média baixa cujo talento natural se desenvolveu qdo, aos 5 anos, um livro chamado A Synopsis of Elementary Results in Pure and Applied Mathematics veio dar em suas mãos, um livro de qualidades e limitações q refletiam quase exatamente as do próprio Ramanujan. Veja este linque sobre ele.

(2) ACESSO AOS MEIOS
O caso do Ramanujan já mostra q a sorte no acesso ao próprio talento deve passar pela sorte no acesso aos meios pra desenvolvê-lo: o talento de escultor precisa ter acesso ao granito e o granito a q tem acesso precisa ser dos bons; o cérebro dum pianista nato precisa no mínimo saber q existe um instrumento chamado 'piano'. Existe sorte até mesmo na constituição física do artista potencial: não basta pertencer a uma família de pintores e nascer com talento pra distinguir nuances mínimas de cores, visualizar perspectivas e conceber obras-primas, se o azar condena o corpo à paralisia. ¿Qtos idólatras natos teriam Haydn como o supra-sumo da música se o azar tivesse trazido a surdez ao Beethoven qdo ainda menino? ¿Qtos surdos de nascença teriam deixado este último no chinelo mas morreram na mendicância?

(3) ACESSO DO PÚBLICO À PRODUÇÃO DO ARTISTA
O artista deve ter sorte até mesmo qto às qualidades de seu público, a começar por seu público imediato: sua família. ¿Qtos meninos absolutamente geniais tiveram acesso a todos os requisitos e depois tiveram q abandonar tudo pra tocar a marcenaria da família? ¿Qtas meninas teriam sido escritoras revolucionárias mas nasceram numa família em q todo o papel e tinta era dado ao irmão mais novo, um escritor medíocre? ¿Qtos pintores teriam eclipsado Picasso ou Rembrandt não fosse o fato de terem nascido num casebre no meio do nada, filhos únicos de pais ignorantes? A Jane Austen seria uma total anônima se sua família não se reunisse pra se deliciar com seus escritos desde sua infância.

Outro ataque do azar é qdo o artista se descobre, se desenvolve, se realiza, e então sua obra é destruída por acidente, por ação de outros ou pela vontade do próprio artista. O otimista Ralph Waldo Emerson diria q basta vc fazer uma ratoeira melhor q a de teu vizinho, e o mundo faz uma fila até tua porta. Mas não é tão simples assim, pois a sorte é q dita quem fica conhecido e quem não. ¿Qtos artistas consumados morreram na miséria após terem sua obras destruídas em guerras e esquecidas por todos? ¿Qtos livros geniais e agora desconhecidos foram queimados pela Inquisição? ¿Quem saberia algo de Kafka se seu amigo tivesse acedido a seu pedido no leito de morte e queimado seus escritos?

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Após dizer tudo isso pra baixar a bola de quem valoriza demais, e pelos motivos errados, o talento alheio ou o próprio, é preciso dizer q celebrar e supervalorizar o talento do artista é tbm um insulto contra ele e contra outros talentos.

É um insulto contra o artista porque além de todo o talento e de toda a sorte, nada é criado sem trabalho. Quem idealiza a vida, o caráter, a personalidade e as emoções do artista é a mesma pessoa q vê uma hora de show sem ver as dez de ensaio, sem ver as quarenta de prática e os anos de estudo diário e disciplinado; é a mesma pessoa q se deixa enganar pela mise-en-scène, pela aura promovida pelo próprio artista pra jogar o foco sobre si mesmo. O artista é um trabalhador q entretém, ensina, emociona ou ilumina com maior ou menor competência. Tudo isso, mas tbm só isso.

O outro insulto é dirigido aos outros talentos: à pessoa q se descobre, se desenvolve e se realiza como sapateiro, àquela q tem um talento especial pra prensar macarrão ou colher cogumelos, àquela q 'nasceu' pra cuidar de retardados mentais num asilo em Quixeramobim, àquela q só encontrou paz e satisfação como estafeta na bolsa de valores de Bagdá.

Muito mais q isso, é um insulto contra todos os bilhões de pessoas q não realizaram seus talentos e agora sobrevivem no lugar errado, na atividade errada.

[contribuiu Bel Seslaf]

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

João Luiz,
Na sua análise dos 5 leitores brasileiros, achei interessante q vc parece estar pensando em leitores de não-ficção (¡ou naquilo q os leitores acreditam ser não-ficção!). Isso diz muito sobre o leitor q você é, ou seja, o q vc lê e como utiliza o q lê pra interpretar as coisas. ¿O q tem a dizer sobre leitores de ficção?

De minha parte, acho sim q brasileiro lê pouco. Até criei - pensando em livros místicos, de auto-ajuda, &c - a frase lapidar 'quem lê pouco vê demais'. E até acho q vc foi generoso demais ao incluir apenas 5 tipos de leitores numa lista q poderia conter muitos mais. Pra mim, a verdade é q a tacanhez do leitor anda de mãos dadas c/ a tacanhez do meio editorial brasileiro. Este é tacanho em vários aspectos, mas só vou falar dos três q entretém meu pensamento de vez em qdo: (1) a pomposidade de quem se acha culto; (2) a pobreza criativa do meio editorial brasileiro; (3) o desleixo das editoras.

POMPA É BOMBA
Compare as introduções de dois dicionários de sinônimos, o inglês Thesaurus de bolso da Oxford e o brasileiro Houaiss de Sinônimos e Antônimos. Em número de verbetes, são quase análogos: o Oxford tem "150,000 alternative words", e o Houaiss tem "187.000 sinônimos".

Esta é minha tradução da introdução completa do Oxford:

"Um dicionário de sinônimos é feito para ajudar você a encontrar as palavras de que precisa para se expressar com mais eficácia e tornar seus escritos mais interessantes. Este dicionário foi elaborado para combinar o máximo de facilidade com o máximo de auxílio que seu pequeno formato possibilita. A gama de sinônimos e de outras informações incluídas aqui é mais ampla do que seria de se esperar num livro deste tamanho. Os verbetes estão dispostos em ordem alfabética, e a organização de cada verbete é simples e em grande parte auto-explicativa. Geralmente, você encontrará o que quer no verbete em que procurar, mas às vezes será necessário cruzar informações com outros verbetes se você precisar de antônimos, ou se você estiver procurando uma gama maior de palavras.

"Ao utilizar um dicionário de sinônimos, deve-se tomar alguns cuidados. Em primeiro lugar, nenhuma lista de sinônimos pode ser considerada 'completa'. Muitas listas poderiam ser estendidas - algumas quase indefinidamente. Considere, por exemplo, a variedade de palavras que poderíamos usar em lugar de (digamos) bom ou agradável. Em segundo lugar, raramente no inglês duas palavras são totalmente intercambiáveis. Os assim chamados sinônimos podem expressar nuances distintas de significado, ou pertencer a contextos diferentes, ou implicar em sinais diferentes sobre o escritor ou o leitor-alvo - e assim por diante. Espero, portanto, que este volume se torne um recurso útil, mas não somente como um repositório sem vida de ?palavras para usar?: minha principal esperança é que um dicionário de sinônimos - mesmo um pequeno como este - nos incite a pensar sobre a língua, e nos torne capazes de explorar mais profundamente nosso próprio conhecimento e compreensão de seus complexos processos."
Alan Spooner

Só isso.

Já a introdução do Houaiss, de Mauro de Salles Villar, estende-se por 4½ páginas. Não vou te encher o saco. Só vou citar algumas partes, pra vc sentir o baque:

"Desde a Antigüidade os homens interrogam-se sobre a origem das palavras e sua significação. Heródoto, Platão, Aristóteles, Cícero, Lucrécio, Plutarco, Plotino, e os gramáticos Varrão (que codificou a gramática latina no século I a.C.), Sexto Festo e Nônio Marcelo estão entre aqueles que escreveram sobre tais questões. Foi, porém, Demócrito, pai da teoria atômica do universo e prógono das teorias de indestrutibilidade da matéria e da conservação de energia, quem primeiro registrou, pelo remoto século IV a.C, os fenômenos da polissemia (multiplicidade de sentidos numa só palavra ou locução) e da sinonímia (relação de sentido entre dois ou mais vocábulos ou locuções cuja significação é a mesma ou muito próxima)."

E dá-lhe parágrafos de rocambolices históricas. Mais adiante:

"A noção de SINÔNIMO é polissêmica, e sobre ela escreveu M. Tutescu (Précis de semantique française, Paris, Klincksieck, 1975, citado por D.A. Cruse) tratar-se da "relação semântica que mais tinta fez correr, a relação que o bom senso estima ser clara, mas que os lógicos não cessam de proclamar como martirizante". Sinônimos absolutos denominam-se aqueles capazes de se permutar em qualquer frase, pelo fato de denotarem e conotarem de modo igual a mesma realidade. (...) Na metaliguagem empregada pelos dicionários de tipo semasiológico, por seu lado, a cada unidade léxica deve equivaler uma paráfrase (...) cuja perfeição é medida em relação à sua maior ou menor possibilidade de se permutar em qualquer contexto com a unidade léxica definida."

E por aí vai. 4½ páginas de chatice totalmente irrelevante pra 99,99% dos usuários do dicionário. É 'sinônimo perifrástico' pra cá, 'valor disfêmico' pra lá. Nenhuma frase inspiradora, nenhum comentário simples, nada além de uma secura descritiva, um ar professoral, uma tentativa quase desesperada de mostrar q o assunto tá dominado e q o Houaiss não foi compilado de qqer jeito, não: ¡teve muita pesquisa, muito discernimento, muita seriedade! É tanta demonstração de erudição, tanta asserção de coerência, q até se desconfia o oposto: o Spooner, c/ sua simplicidade, parece gostar mais de filologia do q o Salles Villar.

É óbvio q não quero comparar a qualidade dos dois dicionários nem a erudição de seus redatores. Mas as perguntas q me faço tbm são óbvias: ¿Q motivo levaria um redator a achar necessário ou apropriado ou oportuno escrever algo q só 0,01% de seus usuários apreciariam devidamente? ¿Por que a editora consentiu a q o redator pavoneasse seus conhecimentos em lugar de servir ao público c/ uma introdução sucinta e animadora?

As respostas, só eles sabem. Mas arrisco q certamente têm algo a ver c/ a opinião q eles fazem dos leitores brasileiros, aqueles coitadinhos q precisam de um pouco mais de cultura, q mal sabem juntar três palavras corretamente. É justamente esse um dos principais motivos por que os coitadinhos não leiam mais: a pose do escritor, aquela pose arrebicada q não engana ninguém.

Sobre a introdução do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, melhor eu nem falar. Pra vc ter uma idéia, tem nela uma palavra q ¡nem sequer consta no próprio dicionário!

O IDEAL É TER IDÉIAS
Em qqer seção de literatura infantil de qqer livraria brasileira há mais livros traduzidos q o contrário. Desde cedo, a criança q lê é bombardeada por textos traduzidos, textos cuja linguagem na maioria das vezes não combina c/ a língua viva q ela fala e ouve diariamente. ¿Será q ninguém neste país consegue escrever c/ naturalidade? Mas o problema de traduzir não engloba apenas a questão do texto em si, mas tbm o fato de q a idéia de escrever sobre algo veio de outro país; a criança já cresce preferindo aquilo q não é daqui. ¿Será q ninguém neste país tem idéias interessantes e originais pra escrever? E o problema não pára por aí, pois não é só o texto q é traduzido. Os livros em si são realizações de idéias importadas: um livro tem o formato de um helicóptero; outro tem uma capa de plástico; outro tem uma encadernação diferente; outro é uma idéia editorial totalmente nova, &c &c &c. Parece q as idéias importadas não têm fim, ainda mais q o q é traduzido e adaptado por aqui é apenas uma fraçãozinha do q existe. ¿Será q ninguém neste país tem idéias? Vc diria, ah, mas o Brasil é só um país, e os estrangeiros são muitos. Balela. Veja por exemplo a quantidade de livros traduzidos apenas do francês.

A tacanhez das editoras brasileiras é um problema relacionado c/ aquilo q sempre digo: só há progresso e desenvolvimento onde há variedade e distinções. Mas no Brasil quase todo livro é publicado como se fizesse parte de uma coleção: aquele formatinho A5 14x21, a mesma encadernação colada, a mesma espessura da capa, o mesmo papel. Não é por acaso q o povão não se sinta atraído.

Meu ponto aqui é q se vc observou a paisagem brasileira e identificou apenas cinco tipos de leitores, então a coisa tá preta mesmo.

IMPROVISO É IMPREVISTO
A improvisação e o desleixo nas edições brasileiras tbm é um forte fator na rejeição dos livros. Um aspecto interessante dos livros brasileiros são as lombadas: pouca coisa reflete tão bem a improvisação das editoras. No Brasil há desconforto até na hora de escolher um livro numa estante. Numa seção de livros em inglês, o freguês lendo as lombadas se curva prà direita; na seção de livros franceses, ele se curva prà esquerda; na seção de livros brasileiros, o freguês se curva pra cá, pra lá, pra cá... A chatice já começa ali. Não há um padrão, nem mesmo numa mesma editora.

O desleixo é algo pior. ¿Vc já abriu algum livro daquela coleção promovida pela Folha? Uma encadernação horrível: as páginas se contorcem ao se abrir o livro. C/ honrosas exceções, quase todo livro brasileiro q abri nos últimos anos tinha algum defeito de concepção ou realização. Eu poderia enumerar alguns exemplos, mas já enchi bastante, não?

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¿Todos esses problemas de q reclamo são motivo pra não ler? Pra mim, não. Mas ao criticar as pessoas q não procuram o conhecimento nos livros, lembro q antes de conquistar é preciso seduzir, antes de seduzir é preciso atrair, e os redatores e editoras não estão ajudando. Se um programa de tv for pomposo, sem imaginação e mal-feito, tbm não terá muita audiência. O sucesso de alguns poucos livros 100% nacionais atesta q o brasileiro quer ler, sim. Só não encontra o quê.

quarta-feira, fevereiro 04, 2004

A norma estulta

João Luiz,
Sorry. Seu texto sobre os leitores respondo outra hora. Transcrevo aqui um comentário do Pracimademoá sobre um texto no Dr Plausível q critica a 'norma estulta', cuja réplica não caberia lá.

"Acho que o Dr. Plausível (ou seu porta-voz) confunde a norma culta com estupidez. São coisas muito diferentes. A falta de discernimento da cavalgadura de Miami e de tantas outras por aí não é culpa da norma culta, que pode (e deve!) muito bem ser empregada com doses bastante generosas de sensatez. Se a Wanessa Camargo pensa que é cantora, devemos culpar *a música*? Se o Sarney pensa que é escritor, culpamos *a literatura*? Quando há homicídio, culpa-se a arma? Que culpa tem a norma culta se a figura de Miami não tem noção do que faz? Defendo o direito de qualquer um odiar a norma culta, mas não se pode atribuir a ela responsabilidade por fenômenos aleatórios. Recomendo uma visita a uma das clínicas Dr. Coerente.Em tempo: "assistir" é transitivo indireto. A menos que o digníssimo esteja "ajudando os estertores" de alguma forma."

Excetuando duas frases, o Demoá está coberto de razão.

Na primeira ("o porta-voz confunde a norma culta com estupidez"), está compreensivelmente enganado. A norma culta (NC ou, p/ os não-íntimos, NoCu) é em grande parte inteligente, e reconheço isso. Mas 'inteligente' não inclue 'abrangente', ou mesmo 'eficiente'. A segunda frase ("não se pode atribuir à NC responsabilidade por fenômenos aleatórios") é um julgamento, digamos, apressado, se é q o entendi. Fora essas duas frases, não há o q adicionar ao q ele diz - até onde vai.

No entanto, o problema vai bem mais longe. Mesmo na sua defesa (por certo resumida) da NC, nota-se as falácias subjacentes à defesa da norma culta. Veja por exemplo a frase "a norma culta pode muito bem (e deve!) ser empregada com doses bastante generosas de sensatez". Note o 'pode' e o 'deve'. P/ mim, aí estão evidentes duas percepções implícitas q depõem contra o cabresto por decreto da NC: (1) a de q seguir a NC não é algo q acontece naturalmente na língua ('pode ser empregada'), e (2) a de q pra se expressar bem é preciso ser sensato e ignorar boa parte da NC ('deve ser ... com sensatez').

A norma culta - c/ a imposição arbitrária explícita em 'norma' e a ofensa arrogante implícita em 'culta' - não é a língua. É uma padronização lógica de uma pequena parcela dos fenômenos da língua. Mas, por tratar de fenômenos humanos dentro das infinitas possibilidades do mundo real, tbm é uma padronização muitas vezes incoerente e outras tantas vezes inconsistente.

Uma das conseqüências mais nefandas da própria existência do conceito de NC é q infinitas porções da língua são dizimadas, infinitas reentrâncias, sutilezas e gradações de formalidade são mutiladas por simplesmente desviar a atenção do falante/escritor ou do ouvinte/leitor p/ a forma necessariamente única de uma frase em detrimento de seus múltiplos conteúdos. Por exemplo, o Demoá, ao ler "assistir os estertores", fixou a atenção na omissão da preposição e não se perguntou por que cargas d'água alguém criticando a NC cometeria esse 'deslize'. Ou seja, ver o 'erro' o impediu de ver a piada (explico: usei a ambivalência entre as formas 'incorreta' e 'correta' p/ dizer q o Dr Plausível tanto observa o lento definhar da NC como contribui p/ ele). Do mesmo modo, pelo Brasil afora, ficar alerta aos 'erros' impede diariamente a percepção de milhares de sutilezas e paralisa, rigidifica e embrutece a capacidade de ver e expressar a pluralidade do mundo.

O triste é q o usuário do português pense q precisa de uma norma, além daquilo q é implementado dinamicamente pelo uso. O usuário de português perde tempo c/ inutilidades formais - por exemplo, a redundância na concordância de número: 'as aves verdes e azuis' é promovido em vez do 'inculto' mas profundamente coerente e econômico 'as ave verde e azul'. C/ o foco na forma (isto é, como se soletra 'blablabla', qual a regência e conjugação corretas de 'blablar', se é certo ou não dizer 'nota-se os blablablas' &c) o português perde o principal, q é a capacidade de perceber e expressar as distinções mínimas q exitem no mundo real. Diz-se sempre q o português tem um vocabulário imenso, afirmação à qual sempre respondo 'copia verborum, cetera desunt' (copioso vocabulário, mas falta-lhe o resto). O escritor/falante brasileiro perde tempo ajeitando seu texto de acordo c/ a NC pra não dar vexame, qdo deveria se concentrar nas nuances de seu pensamento, procurando as palavras q mais se aproximem ao conceitos q ele tem em mente. Pelo menos no Brasil, a tradição de correção ortográfica e gramatical pisoteou e eliminou completamente a tradição da contínua discriminação entre palavras, de modo q hoje se confundem concupiscência, lascívia, lubricidade e luxúria; ou avariar, danificar e estragar; ou célere, ligeiro, rápido e veloz. Nem sequer os dicionários escapam. Por exemplo, o Aurélio (aliás, tido por aquela besta maiamesca como o repositório de tudo q é certo e bom) diz q 'cínico' é o mesmo q 'hipócrita'. Em línguas de culturas mais complexas, como são o inglês, o francês e o alemão, a escolha entre palavras causa vários tipos de impactos diferentes. No português brasileiro virou tudo uma gororoba só.

Sem falar nas regricas de derivação mais excludentes q já vi. ¿Vc notou, dois parágrafos acima, o verbo 'rigidificar'? Se existe 'rígido', ¿por que catso "não existe" 'rigidificar'? ¿Por que "não existe" um substantivo derivado de 'insólito', tipo 'insolitez'? ¿Por que qdo alguém faz isso - ou seja, constrói uma palavra perfeitamente cabível e útil - é ridicularizado, e sua produção é chamada de 'neologismo desnecessário'? E por aí vai, até a coisa se perder de vista. O cara q distingue entre palavras virou o chato. A moda é segregar ortografias e regências.

Leia tbm o ítem (2) no texto de 30/7/02.
Leia tbm sobre o Aldo Rebelo.

[Bel Seslaf colaborou]

quarta-feira, setembro 10, 2003

Embora as questões mais conhecidas levantadas pelo Aldo Rebelo não tenham, a rigor, problemas de hipoplausibilose, o Dr Plausível poderia fazer críticas corrosivas e elogios entusiasmandos ao mesmo. Mas já dizia (acho) John Littleton-Murray: "If you want to be precise, you're bound to be metaphorical", q traduzo: "Para ser preciso, é preciso ser metafórico" (uma tradução q o próprio Rebelo apreciaria: ficou melhor em português q no original, modéstia à parte); portanto, vou usar uma metáfora p/ mostrar a imagem q o dobre debudado me traz à mente. Ele me lembra uma tira do Calvin:

"Q há p/ o jantar, mãe?"
"Tortellini"
"Oh, não, tortellini, não! Odeio tortellini! Q nojo!! Eca!! Não tem nada mais horrível q tortellini!!! A gente não pode comer outra coisa?!?"
"Não."
E é só aí q o Calvin abre o dicionário p/ saber o q é tortellini, afinal.

O Rebelo é como uma pessoa criticando um livro ruim q nem sequer leu: o livro é ruim sim, mas por não saber do q fala, o Rebelo critica os personagens qdo deveria criticar o enredo. Ou seja, ele está justificavelmente indignado com o assunto certo, mas pelos motivos errados.

Sobre sua insistência por uma norma ortográfica q aportuguese (!) as palavras estrangeiras, ele me lembra um cartum do Quino em q um funcionário público sai carimbando todo e qqer objeto à sua volta. O Rebelo tem essa mania de funcionário público regulamentar tudo q vê pela frente, tanto p/ deixar sua marca como p/ aumentar a receita do estado.

Vou citar um exemplo de como o Rebelo pega o touro certo pelo rabo errado (frase esta q acabei de inventar; parece não ter sentido, mas foi isso mesmo q eu quis dizer).

Ele critica o fato de o brasileiro usar palavras como 'chat' em vez de 'bate-bapo', e 'site' em vez de 'sítio', e coisas do gênero. Mas um fato inescapável é q uma cultura, uma pessoa, uma ciência &c é tanto mais desenvolvida, complexa e eficiente qto mais distinções fizer sobre o q observa. Muita gente não vê diferença entre, por exemplo, 'insultar' e 'ofender'; mas existe uma diferença, e enxergar diferenças desse tipo é indício tanto de complexidade como de desenvolvimento. Portanto, ser capaz de expressar claramente a diferença entre uma idéia e outra por meio de duas palavras distintas é ótimo: 'site' é uma coisa e 'sítio' é outra e as duas nunca serão confundidas. No caso de 'site', o falante de inglês não tem esse boi: p/ distinguir entre um 'site' e outro, ele precisa ou do contexto ou de uma palavra a mais, por exemplo 'internet site' e 'building site'. O q o Rebelo não vê é q está exatamente aí o problema do brasileiro: o brasileiro não gosta de ter q analisar o 'contexto' p/ entender uma palavra e é portanto um mau leitor, um leitor sem prazer; ele não gosta de trocadilhos e tem pouco senso de humor; ele não gosta de vestir palavras antigas c/ significados novos e portanto fica confuso facilmente. Por outro lado, não é verdade (como quer o Rebelo) q o português tem palavras suficientes p/ batizar qqer novidade. Sorry. Muita coisa teria q mudar na infame 'norma culta' e na cultura brasileira p/ acompanhar o ritmo das novas tecnologias. Para ser preciso, é preciso ser metafórico: qqer jargão novo terá q usar o q já existe, como alíás é o q faz o inglês.

Se o problema é o inglês invadir o português, as causas são absurdamente mais complexas do q poderia ser resolvido c/ uma Lei Robalo. Só p/ citar dois extremos:

Num extremo:
(1) quem cria a tecnologia também cria a nomenclatura. Mas no Brasil, a rotina é copiar, desde flash mobs até leis lingüísticas, passando por matérias jornalísticas e interpretações científicas. Enquanto o Brasil copiar tudo dos outros, tbm vai ter q usar os nomes q os pais das idéias criam. Aliás, esse é um ponto mais importante do q parece à primeira vista: as criações só 'pegam' e se desdobram se existe um vocabulário flexível e adaptável q acompanhe o ritmo das criações.

No outro extremo:
(2) como bem disse uma colombiana q conheci na Usp anos atrás, "los brasileños les tienen miedo a las palabras": brasileiro tem medo das palavras. Tudo no Brasil precisa ser dito à meia boca, senão ofende. É dificílimo ter uma discussão abstrata sobre algo concreto: tudo vira discussão concreta sobre algo abstrato. Como conseqüência, pouca coisa realmente nova é criada, poucas discussões vão a fundo, poucos problemas são resolvidos. A atitude reinante é sempre "vamos deixar como está p/ ver como é que fica" -- aliás uma frase (juntamente c/ "jogar conversa fora") q é tão, mas TÃO, peculiar à língua portuguesa q parece prova cabal de q a língua determina a cultura e não o contrário.

O Aldo Rebelo não é nenhum idiota. É um cara culto e inteligente. Mas sua ideologia o leva a olhar para a utilização do inglês no Brasil como invasão das hostes imperialistas, e c/ isso não enxerga os problemas brasileiros q permitem essa invasão. Além disso, lê-se nas entrelinhas de seu discurso um desejo inconfessável de batizar uma lei c/ seu próprio nome, a exemplo da lei francesa q ele quer ãã... copiar.

quinta-feira, junho 26, 2003

Moro numa rua em que as árvores, com a ajuda da prefeitura e suas motosserras, estão perdendo para os postes e os fios a briga pelo espaço aéreo. Não culpo a prefeitura atual, pois ela está apenas tentando administrar os prejuízos decorrentes de uma decisão desmiolada e improvidente de alguma câmara municipal ou estadual várias décadas atrás, que deixou-se influenciar pelo lobby dos postes e preferiu a transmissão elétrica aérea em lugar da subterrânea, ou de outras alternativas. Algumas pessoas que com certeza já faleceram tiveram seus momentinhos de glória na câmara e como conseqüência vivemos numa cidade quase sem árvores.

Agora querem cortar ainda mais árvores no Ibirapuera; e como se isso não bastasse, também querem prencher o vazio deixado, não com postes, mas com mais uma monstruosidade niemeyresca, quase como um réquiem ao arquiteto. Já estava na hora de colocar o Sr Oscar Niemeyer no seu devido lugar: é um escultor interessante, mas é daqueles arquitetos que nunca deveriam ter tido liberdade para concretizar seus garranchos. Perguntem a qualquer pessoa que reside, trabalha ou estuda nas catacumbas por ele perpetradas e obterão uma resposta muito diferente da opinião dos que defendem a aparência externa de seus devaneios.

Para evitar que as gerações futuras venham a praguejar contra o Ibirapuera, é preciso evitar que Niemeyer obtenha mais esse momentinho de glória.

Se instado, eu teria várias outras coisas a dizer sobre o Oscarito.

domingo, junho 08, 2003

Segurança Contra Traduzês

Há um texto circulando pelos imêios, c/ conselhos de segurança p/ mulheres. A coisa começa assim:

"Se um dia você for jogado dentro do porta-malas de um carro, chute os faróis traseiros até que eles saiam para fora, estique seu braço pelos buracos e comece a gesticular feito doido. O motorista não verá você, mas todo mundo verá. Isto já salvou muitas vidas.
Algo em torno de 99% de todos nós estaremos expostos a, ou tornar-nos-emos vítimas de, um crime violento. Os três motivos pelos quais as mulheres são alvos fácei s para atos de violência são:
a. Falta de estar cônscia. Você TEM que estar cônscia de onde você está e do que está acontecendo em volta de você.
b. Linguagem do corpo. Mantenha sua cabeça erguida, balance seus braços, e permaneça em posição ereta.
c. Lugar errado, hora errada. NÃO ande sozinha em ruas estreitas, nem dirija em bairros mal-afamados à noite.
As mulheres têm a tendência de entrar em seus carros depois de fazerem &c &c &c"



Tudo verdade. Só q, como tanta coisa no mundo do ponto-com-ponto-bê-erre, é traduzido do inglês. Esse texto em particular vem dos EUA, c/ toda aquela carga paranóica deles, e é muito útil p/ ELES. Entre outros despropósitos, o texto parece entender q toda mulher brasileira tem um carro. Cadê os conselhos de segurança em ônibus de periferia? Ou seja, é tudo verdade, mas é a verdade DELES. O texto original e completo está neste endereço:

www.awarenyc.org/safety.htm

Não estou dizendo q não existem problemas parecidos com esses no Brasil. Mas peraí! Pra quê neurotizar, paranoiquizar, americanizar o Brasil? Já não há problemas suficientes? Pra quê criar e fomentar uma geração de picuinhistas no estilo do tio Samuel?

Esse texto até foi uma surpresa. É uma exceção pelo fato de estar razoavelmente bem traduzido, embora não tenha resolvido bem certas coisas. (Por exemplo, traduzir "It is better to be safe than sorry." para "É melhor estar a salvo do que estar arrependido." é típico de aluno estudado porém inexperiente. Outra falha é traduzir "sympathetic" por "condescendente": as duas palavras simplesmente não têm significados equivalentes. Y otras cositas más.) Mas digo q fiquei surpreso porque recebo CADA texto pela internet! Dá a impressão de q muito brasileiro fala traduzês em vez de português.

Sempre q recebo esse tipo de texto, fico me perguntando:

Será q no Brasil ninguém tem idéias p/ escrever? Será q ninguém tem nada interessante ou verdadeiramente útil p/ dizer e precisa ficar reproduzindo coisas estrangeiras? Será q nenhum escrito brasileiro resiste ao crivo do email? Será q até vamos ter q rir de piadas [mal] traduzidas? Basta dizer q (segundo meus cálculos) pelo menos 95% das mensagens edificantes, conselhos em Powerpoint, piadas, cartuns e preces q circulam na internet foram originalmente escritas por algum americano careta, paranóico, pudico e caipira, e foram então traduzidas por um semi-letrado incapaz de comunicar suas próprias idéias.

Será q os tradutores desses textos não percebem q nenhum brasileiro (q se preze!) diz coisas como "um ex-convicto" [an ex-convict]; "gastamos horas" [we would spend hours]; "compradores de risco" [risk-takers], e uma tonelada de outras traduzices? Pois alguns, baixando logo o zumbi, utilizam mecanicamente as regras americanas na formação de frases!! Será q não pensam?

E a pergunta-corolário: Será q tem tanto brasileiro supostamente culto q pensa a partir de traduções mal-feitas e vê o mundo com os olhos alheios?

O Lobão, numa memorável entrevista, esculhambou os estrangeirófilos dizendo q passam a vida "gozando c/ o pau dos outros". Agora, além de gozar c/ o pau dos outros, será q o brasileiro está querendo tremer de medo alheio?

Enquanto os brasileiros se limitarem a regurgitar idéias importadas, não criarão nada de novo e serão o povo bundão q aí está. Note q o remetente original do texto disse c/ todas as letras "A pessoa que elaborou o conteúdo este [sic] deste e-mail é diretor de uma empresa de segurança no RJ." Se o tal diretor (se realmente existe) entende q "traduzir" é igual a "elaborar", não admira q tenha de recorrer a idéias importadas. E sua bundice se extende até a falta de hombridade pra dar os devidos créditos.

Nada disso é uma censura às pessoas q re-enviam essas coisas. Eu até compreendo q, na falta de produção nativa, a avidez por informações e comentários as conduza a traduzir e reproduzir criações estrangeiras. Mas eu prefiro dez mil vezes mais receber textos inteligentes originalmente escritos em português.