quarta-feira, fevereiro 04, 2004

A norma estulta

João Luiz,
Sorry. Seu texto sobre os leitores respondo outra hora. Transcrevo aqui um comentário do Pracimademoá sobre um texto no Dr Plausível q critica a 'norma estulta', cuja réplica não caberia lá.

"Acho que o Dr. Plausível (ou seu porta-voz) confunde a norma culta com estupidez. São coisas muito diferentes. A falta de discernimento da cavalgadura de Miami e de tantas outras por aí não é culpa da norma culta, que pode (e deve!) muito bem ser empregada com doses bastante generosas de sensatez. Se a Wanessa Camargo pensa que é cantora, devemos culpar *a música*? Se o Sarney pensa que é escritor, culpamos *a literatura*? Quando há homicídio, culpa-se a arma? Que culpa tem a norma culta se a figura de Miami não tem noção do que faz? Defendo o direito de qualquer um odiar a norma culta, mas não se pode atribuir a ela responsabilidade por fenômenos aleatórios. Recomendo uma visita a uma das clínicas Dr. Coerente.Em tempo: "assistir" é transitivo indireto. A menos que o digníssimo esteja "ajudando os estertores" de alguma forma."

Excetuando duas frases, o Demoá está coberto de razão.

Na primeira ("o porta-voz confunde a norma culta com estupidez"), está compreensivelmente enganado. A norma culta (NC ou, p/ os não-íntimos, NoCu) é em grande parte inteligente, e reconheço isso. Mas 'inteligente' não inclue 'abrangente', ou mesmo 'eficiente'. A segunda frase ("não se pode atribuir à NC responsabilidade por fenômenos aleatórios") é um julgamento, digamos, apressado, se é q o entendi. Fora essas duas frases, não há o q adicionar ao q ele diz - até onde vai.

No entanto, o problema vai bem mais longe. Mesmo na sua defesa (por certo resumida) da NC, nota-se as falácias subjacentes à defesa da norma culta. Veja por exemplo a frase "a norma culta pode muito bem (e deve!) ser empregada com doses bastante generosas de sensatez". Note o 'pode' e o 'deve'. P/ mim, aí estão evidentes duas percepções implícitas q depõem contra o cabresto por decreto da NC: (1) a de q seguir a NC não é algo q acontece naturalmente na língua ('pode ser empregada'), e (2) a de q pra se expressar bem é preciso ser sensato e ignorar boa parte da NC ('deve ser ... com sensatez').

A norma culta - c/ a imposição arbitrária explícita em 'norma' e a ofensa arrogante implícita em 'culta' - não é a língua. É uma padronização lógica de uma pequena parcela dos fenômenos da língua. Mas, por tratar de fenômenos humanos dentro das infinitas possibilidades do mundo real, tbm é uma padronização muitas vezes incoerente e outras tantas vezes inconsistente.

Uma das conseqüências mais nefandas da própria existência do conceito de NC é q infinitas porções da língua são dizimadas, infinitas reentrâncias, sutilezas e gradações de formalidade são mutiladas por simplesmente desviar a atenção do falante/escritor ou do ouvinte/leitor p/ a forma necessariamente única de uma frase em detrimento de seus múltiplos conteúdos. Por exemplo, o Demoá, ao ler "assistir os estertores", fixou a atenção na omissão da preposição e não se perguntou por que cargas d'água alguém criticando a NC cometeria esse 'deslize'. Ou seja, ver o 'erro' o impediu de ver a piada (explico: usei a ambivalência entre as formas 'incorreta' e 'correta' p/ dizer q o Dr Plausível tanto observa o lento definhar da NC como contribui p/ ele). Do mesmo modo, pelo Brasil afora, ficar alerta aos 'erros' impede diariamente a percepção de milhares de sutilezas e paralisa, rigidifica e embrutece a capacidade de ver e expressar a pluralidade do mundo.

O triste é q o usuário do português pense q precisa de uma norma, além daquilo q é implementado dinamicamente pelo uso. O usuário de português perde tempo c/ inutilidades formais - por exemplo, a redundância na concordância de número: 'as aves verdes e azuis' é promovido em vez do 'inculto' mas profundamente coerente e econômico 'as ave verde e azul'. C/ o foco na forma (isto é, como se soletra 'blablabla', qual a regência e conjugação corretas de 'blablar', se é certo ou não dizer 'nota-se os blablablas' &c) o português perde o principal, q é a capacidade de perceber e expressar as distinções mínimas q exitem no mundo real. Diz-se sempre q o português tem um vocabulário imenso, afirmação à qual sempre respondo 'copia verborum, cetera desunt' (copioso vocabulário, mas falta-lhe o resto). O escritor/falante brasileiro perde tempo ajeitando seu texto de acordo c/ a NC pra não dar vexame, qdo deveria se concentrar nas nuances de seu pensamento, procurando as palavras q mais se aproximem ao conceitos q ele tem em mente. Pelo menos no Brasil, a tradição de correção ortográfica e gramatical pisoteou e eliminou completamente a tradição da contínua discriminação entre palavras, de modo q hoje se confundem concupiscência, lascívia, lubricidade e luxúria; ou avariar, danificar e estragar; ou célere, ligeiro, rápido e veloz. Nem sequer os dicionários escapam. Por exemplo, o Aurélio (aliás, tido por aquela besta maiamesca como o repositório de tudo q é certo e bom) diz q 'cínico' é o mesmo q 'hipócrita'. Em línguas de culturas mais complexas, como são o inglês, o francês e o alemão, a escolha entre palavras causa vários tipos de impactos diferentes. No português brasileiro virou tudo uma gororoba só.

Sem falar nas regricas de derivação mais excludentes q já vi. ¿Vc notou, dois parágrafos acima, o verbo 'rigidificar'? Se existe 'rígido', ¿por que catso "não existe" 'rigidificar'? ¿Por que "não existe" um substantivo derivado de 'insólito', tipo 'insolitez'? ¿Por que qdo alguém faz isso - ou seja, constrói uma palavra perfeitamente cabível e útil - é ridicularizado, e sua produção é chamada de 'neologismo desnecessário'? E por aí vai, até a coisa se perder de vista. O cara q distingue entre palavras virou o chato. A moda é segregar ortografias e regências.

Leia tbm o ítem (2) no texto de 30/7/02.
Leia tbm sobre o Aldo Rebelo.

[Bel Seslaf colaborou]