quinta-feira, dezembro 12, 2002

João Luiz,
Presumo q o enunciado do problema tenha sido: "Ligue os nove pontos abaixo com o menor número de retas, sem tirar a caneta do papel."

No caso de um enunciado tão chinfrim, o q é considerado criativo está no meio termo entre seguir as instruções com precisão e ignorar um ou mais aspectos subentendidos.

Eis minha solução: pegue uma caneta, um lápis e uma régua; deite a caneta sobre o papel, e sem removê-la em hipótese alguma até final do exercício, use o lápis e a régua p/ grafar três segmentos de retas paralelas, de modo q cada segmento passe por cima de um grupo diferente de três pontos adjacentes.

Quem não pensa c/ rigor dirá q o enunciado está claro. Mas p/ obter a solução considerada 'criativa' no livro, há mais coisas subentendidas no enunciado do q esclarecidas. [a] Ligar... ¿Como assim, "ligar"? ¿Será possível "ligar" dois pontos por meio de um segmento de reta, visto q uma reta consiste de uma série de pontos adjacentes? No enunciado, "ligue" subentende "encontre a reta q contém os dois pontos dados". Pode-se ignorar esse subentendido, recortar os pontos do papel e empilhá-los uns sobre os outros, formando uma reta 'vertical'. [b] Um ponto é praticamente invisível, e o q se vê no papel não são nove pontos mas nove círculos diminutos. (Aliás, no nível em q está a tecnologia hoje, confundir um ponto c/ um círculo diminuto pode ser perigosíssimo!...) Uma solução criativa seria recusar-se a resolver o problema até q se especificasse exatamente em q lugar de cada 'círculo diminuto' se encontra o ponto em questão. [c] Qdo o enunciado diz 'reta', subentende-se q queira dizer 'segmentos de retas', visto q uma reta é uma série infinita de pontos. Além disso, subentende-se q o problema está circunscrito na geometria plana euclidiana. Uma solução que ignore estes subentendidos seria primeiro admitir a impossibilidade prática de uma folha de papel infinita, e então desenhar uma reta passando pelo três pontos superiores até o limite do papel, esperar q ela dê a volta ao mundo, virar o papel um cagagésimo, pegar a reta pelo outro lado do papel, passando por cima dos próximos três pontos, &c. Esta é uma solução extremamente elegante, visto q se trata do menor número de retas possível, ou seja, apenas uma, entendida como uma reta inserida na geometria não-euclidiana. [d] Uma reta só tem uma dimensão, não tem espessura. O enunciado entende 'reta' como 'grafismo q simboliza um segmento de reta por meio de um risco de espessura tal'. Pode-se ignorar a especificação de espessura e fazer o q vc fez: taca uma pincelada de 1½" em linha reta por cima dos pontos, e está resolvido o problema. Outra solução é reduzir a escala dos nove pontos até q eles caibam dentro da espessura da marca de uma caneta. [e] Em nenhum momento, o enunciado especifica q o instrumento marcador usado p/ desenhar as "retas" deve ser a mesma caneta q não pode ser tirada (presumivelmente) "de cima" do papel. Este foi o subentendido q ignorei na minha solução. [f] O 'papel' é a vítima do maior número de subentendidos. Subentende-se q o papel deve permanecer plano e não cilíndrico; q só se pode marcar a face do papel em q se encontram os 'pontos'; q ele não deve ser dobrado; q não se deve analisar a solução microscopicamente; q a integridade física do papel deve ser mantida, &c. Duas das soluções q vc encontrou ignoram questões relativas ao papel.

Para obter a solução desejada, ou seja, simbolicamente 'escapar dos limites do problema proposto sem no entanto escapar de seus limites subentendidos', um enunciado resumido deveria ler-se: "Considere q um plano finito e imutável esteja representado pela folha de papel onde se encontra este enunciado. Considere q os nove círculos diminutos abaixo representam nove pontos distintos nesse plano, perfeitamente dispostos em intersecções adjacentes de um gride cartesiano. Encontre a menor série de segmentos de retas pertencentes ao plano interligadas por suas extremidades, excetuando-se a primeira extremidade e a última, série esta q em sua totalidade contenha todos os nove pontos. Em seguida represente a solução encontrada utilizando um único instrumento marcador, posicionando sua ponta marcadora em contato c/ o papel e só terminando o contato qdo a representação simbólica da série de segmentos de reta tiver terminado."

Assim fica fácil!! O enunciado praticamente dá a resposta q perversamente demonstraria 'criatividade'. Se alguém, dentro dos limites propostos por um enunciado livre de subentendidos, ainda assim consegue uma solução diferente da prevista pelo enunciador, esse sim pode ser considerado criativo.

Há uma célebre anedota sobre René Descartes qdo menino. Um dia em sua escola, seu professor queria mais ficar lendo um livro q dando aula. Mandou então a classe toda somar todos os números (inteiros) de 1 a 100, esperando q ficassem entretidos por uma boa hora e meia. Qual não foi sua surpresa qdo, antes q virasse a primeira página de seu livro, o jovem René lhe trouxe o resultado da soma, q é 5050. O pequeno Descartes simplesmente descobriu q 1+100=101, 2+99=101 ... 49+52=101, 50+51=101; e logo q a soma total é 50x101=5050. Elementar. O professor, admirando a precocidade do menino, não deixou de circular a história. Fosse eu, teria dado uns bons tabefes na cachola do pirralho pra ele deixar de ser metido e aprender a seguir à risca o enunciado do problema, q claramente dizia "somar todos os números de 1 a 100" e não "descobrir qual o resultado da soma de todos os números de 1 a 100". Note q a solução encontrada por Descartes sempre foi e sempre será considerada 'criativa', qdo na verdade o q fez foi indisciplinada e subversivamente ignorar subentendidos. Muito mais esperto teria sido ele se, após ter encontrado a solução, tivesse ficado quieto no seu canto lendo gibi.

Como vc diz "o maior empecilho à criatividade são as restrições que nós mesmos criamos para problemas que não apresentam nenhuma restrição". Mas isso é bastante compreensível. Os subentendidos são uma constante no dia-a-dia, minuto-a-minuto de todos os seres vivos. Os subentendidos são quase instintivos, tal como o fato de uma entonação q sobe parecer uma expectativa e uma entonação q desce parecer uma assertiva. Digo "quase" instintivos porque em alguns lugares acontece o oposto. De qqer modo, a força dos subentendidos é tão grande q criatividade é quase sinônimo de escapar deles.

Portanto, acho q devemos distinguir entre [1] o descarte (!) de subentendidos na resolução de problemas (já q nenhum problema jamais será enunciado c/ precisão completa), e [2] a criação de problemas, como no caso do touro de Picasso, q cria um problema interpretativo (ele não acordou um dia pensando, "Ah, acho q hoje vou tentar a representação dos problemas criados pela industrialização da Espanha.", assim como o criador do problema dos nove pontos não acordou um dia pensando, "Ah, acho q hoje vou tentar um problema p/ testar a criatividade das pessoas comuns."). Eu acho aquele touro a escultura mais inapelavelmente genial do século XX. Mas admito q ela provavelmente foi apenas 'descoberta' por acaso num monte de lixo ou durante uma brincadeira infantil, em vez de 'criada'. O q Picasso criou foram os vários significados da escultura, incluindo aqueles q só existem pelo fato de ela ter sido "criada" por Picasso e criada por "Picasso".