sábado, março 06, 2004

João Luiz,
Achei q vc, como pintor e artista gráfico, se interessaria sobremaneira por este assunto. O texto a seguir é tréplica a um comentário sobre um comentário meu sobre o texto "O Dever do Escritor de Literatura" no blog do Alexandre Cruz Almeida. O comentário q suscitou esta tréplica foi duma leitora: "Escritor (ou o artista em geral) não tem sorte, tem talento. E isso não é para qq um. Não se aprende na escola. Nascemos com ou sem ele."

TALENTO E SORTE
"Don't clap too loudly: it's a very old world." Tom Stoppard, mais uma vez

A principal característica do artista não é o talento. É a sorte. Talento todo mundo tem, pra alguma coisa. Pensar numa pessoa sem talento é como pensar num violão sem cordas. Guardando as proporções, a variedade de talentos é análoga à variedade de cordas: alguns tipos delas soam melhor em alguns modelos de violões (ou guitarras!) e não em outros; pra alguns estilos de música e não pra outros; com algumas técnicas de dedilhado e não com outras; e assim por diante.

A sorte do artista é uma questão de acessibilidade. Vou falar de três tipos de acesso: (1) acesso ao próprio talento, (2) acesso aos meios; e (3) acesso do público à produção do artista.

(1) ACESSO AO PRÓPRIO TALENTO
O acesso ao próprio talento é derivado da sorte de viver em lugar e época apropriados. ¿Qtos jovens foram trucidados durante as Cruzadas sem saber q tinham um talento incomum prà informática? ¿Qtos párias vivem hoje mesmo na Índia sem a menor idéia de q poderiam ter sido gênios da dramaturgia elizabetana? ¿Qtas pessoas com percepção espacial perfeitamente afinada pra dançar nasceram aleijadas? ¿Qtos pivetes cheiram cola em SPaulo estragando a cada fungada suas chances de se revelar mestres culinários? ¿Qtos chineses nascem diariamente e nunca perceberão q poderiam ter fama e fortuna como sambistas de morro? ¿Qtas e qtas mulheres na história tinham o cérebro exatamente talhado pra revolucionar a física nuclear? ¿Qtos artistas potencialmente geniais tinham características pessoais detestáveis, ou por motivos culturais não gostavam de seus talentos? ¿Qtos artistas em potencial simplesmente não descobriram seu talento porque um certo dia aos 9 anos de idade entraram à direita numa bifurcação e não à esquerda?

São todas perguntas sem resposta; e por um motivo prosaico: só se conhece o q se torna público, fato este pouco reconhecido entre os idólatras e bajuladores de gênios, entre os q vêem singularidade onde só há contingência.

A sorte do artista ou cientista no acesso ao próprio talento torna-se ainda mais evidente qdo alguém escapa fantasticamente do azar, sina da maioria. É o caso do matemático indiano Srinivasa Ramanujan, q morreu em 1920 aos 33 anos. Ramanujan tinha um talento particular pra intuitivamente descobrir relações complexíssimas entre números. Era um menino de classe média baixa cujo talento natural se desenvolveu qdo, aos 5 anos, um livro chamado A Synopsis of Elementary Results in Pure and Applied Mathematics veio dar em suas mãos, um livro de qualidades e limitações q refletiam quase exatamente as do próprio Ramanujan. Veja este linque sobre ele.

(2) ACESSO AOS MEIOS
O caso do Ramanujan já mostra q a sorte no acesso ao próprio talento deve passar pela sorte no acesso aos meios pra desenvolvê-lo: o talento de escultor precisa ter acesso ao granito e o granito a q tem acesso precisa ser dos bons; o cérebro dum pianista nato precisa no mínimo saber q existe um instrumento chamado 'piano'. Existe sorte até mesmo na constituição física do artista potencial: não basta pertencer a uma família de pintores e nascer com talento pra distinguir nuances mínimas de cores, visualizar perspectivas e conceber obras-primas, se o azar condena o corpo à paralisia. ¿Qtos idólatras natos teriam Haydn como o supra-sumo da música se o azar tivesse trazido a surdez ao Beethoven qdo ainda menino? ¿Qtos surdos de nascença teriam deixado este último no chinelo mas morreram na mendicância?

(3) ACESSO DO PÚBLICO À PRODUÇÃO DO ARTISTA
O artista deve ter sorte até mesmo qto às qualidades de seu público, a começar por seu público imediato: sua família. ¿Qtos meninos absolutamente geniais tiveram acesso a todos os requisitos e depois tiveram q abandonar tudo pra tocar a marcenaria da família? ¿Qtas meninas teriam sido escritoras revolucionárias mas nasceram numa família em q todo o papel e tinta era dado ao irmão mais novo, um escritor medíocre? ¿Qtos pintores teriam eclipsado Picasso ou Rembrandt não fosse o fato de terem nascido num casebre no meio do nada, filhos únicos de pais ignorantes? A Jane Austen seria uma total anônima se sua família não se reunisse pra se deliciar com seus escritos desde sua infância.

Outro ataque do azar é qdo o artista se descobre, se desenvolve, se realiza, e então sua obra é destruída por acidente, por ação de outros ou pela vontade do próprio artista. O otimista Ralph Waldo Emerson diria q basta vc fazer uma ratoeira melhor q a de teu vizinho, e o mundo faz uma fila até tua porta. Mas não é tão simples assim, pois a sorte é q dita quem fica conhecido e quem não. ¿Qtos artistas consumados morreram na miséria após terem sua obras destruídas em guerras e esquecidas por todos? ¿Qtos livros geniais e agora desconhecidos foram queimados pela Inquisição? ¿Quem saberia algo de Kafka se seu amigo tivesse acedido a seu pedido no leito de morte e queimado seus escritos?

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Após dizer tudo isso pra baixar a bola de quem valoriza demais, e pelos motivos errados, o talento alheio ou o próprio, é preciso dizer q celebrar e supervalorizar o talento do artista é tbm um insulto contra ele e contra outros talentos.

É um insulto contra o artista porque além de todo o talento e de toda a sorte, nada é criado sem trabalho. Quem idealiza a vida, o caráter, a personalidade e as emoções do artista é a mesma pessoa q vê uma hora de show sem ver as dez de ensaio, sem ver as quarenta de prática e os anos de estudo diário e disciplinado; é a mesma pessoa q se deixa enganar pela mise-en-scène, pela aura promovida pelo próprio artista pra jogar o foco sobre si mesmo. O artista é um trabalhador q entretém, ensina, emociona ou ilumina com maior ou menor competência. Tudo isso, mas tbm só isso.

O outro insulto é dirigido aos outros talentos: à pessoa q se descobre, se desenvolve e se realiza como sapateiro, àquela q tem um talento especial pra prensar macarrão ou colher cogumelos, àquela q 'nasceu' pra cuidar de retardados mentais num asilo em Quixeramobim, àquela q só encontrou paz e satisfação como estafeta na bolsa de valores de Bagdá.

Muito mais q isso, é um insulto contra todos os bilhões de pessoas q não realizaram seus talentos e agora sobrevivem no lugar errado, na atividade errada.

[contribuiu Bel Seslaf]

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