sábado, agosto 03, 2002

João Luiz,
Vc está misturando coisas corretas e concordáveis c/ outras simplesmente inaceitáveis. Acho q vc se precipitou em alguns pontos. Mas vamos por partes.

De início, tenho a impressão de q vc entrou em contradição em alguns lugares. Disse q as “palavras ... são sub-produtos de nosso modo de idealizar o mundo”; logo, disse q as “ideologias ... criam formas de pensar”; e mais tarde, q “palavra e pensamento são a mesma coisa” e q “eliminar palavras é o mesmo que eliminar ideologias”. ¿Mas como é q pode uma ideologia criar uma forma de pensar (um modo de idealizar o mundo) cujo sub-produto será a palavra, q por sua vez é a mesma coisa q o próprio pensamento do qual é um sub-produto, e cuja eliminação tb eliminará aquilo q a cria? Alguns dos seus termos estão crying out por definições mais precisas.

Não é verdade q “não existe outra forma de pensar senão através das palavras”, nem q o homem começou a pensar qdo começou a usar palavras. Isso não é verdade nem q por ‘pensar’ vc queira mesmo dizer “manejar uma forma articulada de raciocínio”. É como achar q o elefante só começou a respirar depois q ganhou uma tromba. O pensamento existe independentemente das palavras. Considere: ¿os surdos-mudos só começam a pensar depois q aprendem a ler?; poder-se-ia dizer q a linguagem de sinais é constituída de ‘palavras’ manuais, mas ¿isso quer dizer q os surdos-mudos só começam a pensar depois q controlam os músculos dos braços? Há evidências de um começo de raciocínio em bebês as young as três meses. Há tb evidências incontestáveis de raciocínio, sentimento e comunicação intencional por parte de animais, domésticos ou selvagens, q apontam p/ a existência desses mesmos processos mentais nos hominídeos mudos. Vc mesmo, um pintor, é um dos q menos poderia dizer q pensamento e palavra são a mesma coisa.

Tb está equivocada a idéia de q não é possível reconhecer a sensação de injustiça sem conhecer a palavra ‘injustiça’. Do jeito q vc colocou a coisa, até parece uma tautologia. Dizer q “(...) se um bebê moderno crescer sem nunca se deparar com a palavra “injustiça”, ele (diante de uma injustiça) terá um sentimento indefinido (...)” é como dizer q, se não posso definir o q sinto, então estou tendo um sentimento indefinido. O newspeak de GOrwell não é uma idéia tão boa. Não leva em conta a criatividade lingüística natural q o ser humano demonstra desde bebê. Se uma sensação comum não é representada por nenhuma palavra, as pessoas vão criar uma nova. Em vez de ‘injustiça’, usarão uma paráfrase, p.ex. ‘estou sentindo uma coisa ruim’. Logo, ‘coisa ruim’ vira, digamos, ‘coisarrum’; e logo a noção de injustiça vai ser expressa pela palavra ‘cosarú’. Esse é o tipo de processo q nos trouxe palavras como ‘enfrentar’ (ir em frente) e ‘criança’ (o ato de criar). Talvez seja esse o processo q nos trouxe todas as palavras usadas hoje em dia, a partir de grunhidos e gemidos pré-humanos.

É claro q há palavras q chegam aos nossos virginais ouvidos carregadas de ideologia. Palavras representativas de entes não-provados como ‘deus’, ‘felicidade’ &c são realmente inseparáveis da idéia q representam. Porém não pq foram criadas pela ideologia, mas pq originalmente expressavam idéias impoderáveis e inapelavelmente abstratas – idéias q foram então codificadas em ideologias.

O mesmo (ou seja, q estejam carregadas de ideologia) não se pode dizer de palavras como ‘verde’, ‘qualquer’, ‘água’, ‘ferida’, q formam a maior parte do vocabulário de qqer língua, e deviam ser comumente usadas pelos humanos pré-históricos. Certamente essas palavras precederam ‘deus’ e ‘felicidade’ no vocabulário primitivo. P/ provar q há alguma ideologia por trás delas, vc terá de mostrar q “as relações que conferem unidade a determinado grupo social” são expressas e reforçadas por “crenças, opiniões e valores” denotadas por elas. Não dá.

Além disso, a crença de q “não existe outra forma de pensar senão através das palavras” admite vários corolários muito polêmicos, p/ dizer o mínimo. Por exemplo, qqer língua tem palavras e expressões intraduzíveis a outras línguas. Se uma língua qqer tem o verbo “struffens” significando “rir levantando a cabeça, c/ as mãos tapando os olhos”, muita gente q fala essa língua acredita q o conceito de “struffens” seja incompreensível por quem fala outras línguas. Isso é um absurdo. É como achar q não se possa dizer (p.ex.) em português “rir levantando a cabeça, c/ as mãos tapando os olhos” . É como achar q os mexicanos têm um sentimento indefinido qdo sentem ‘saudade’. Acho até possível demonstrar q a inexistência de “struffens” em português ou “saudade” em inglês limita de certa forma a eficácia dessas línguas p/ usos não enfatizados na história de cada uma. Mas seria um exagero completamente despistado concluir q, qdo um brasileiro vê alguém rindo levantando a cabeça tapando os olhos c/ as mãos, a cena lhe passa despercebida ou lhe causa uma sensação indefinida.

Sei q vc nunca diria o disparate acima. Só estava falando dos corolários. No entanto, essa sua crença na palavra como pré-requisito do pensamento o levou a acreditar q uma “moça indígena” não estaria à procura de um homem “sensível e inteligente”. Será mesmo? Acho q o contrário é verdade. Sensibilidade e inteligência são qualidades universalmente prezadas pelas mulheres, mesmo q culturalmente não haja uma pressão, uma permissão ou um vocabulário para expressar essa preferência. O fato de q a palavra “sensível” exista na língua portuguesa é certamente uma pressão a mais p/ o coitado do milionário à cata de mulher. Porém é uma pressão não pq a palavra evidencie um detalhe q do contrário passaria despercebido, mas pq torna-se uma panacéia lingüística p/ significar trocentas coisas diferentes e às vezes díspares.

Vc tb disse algo sobre a evolução humana q considero irrefletido. Imagino q qdo vc fala em “bebê primitivo” deva estar pensando num bebê nascido mais ou menos na época em q os primeiros humanos surgiram. Vc diz q o cérebro desse bebê era muito parecido c/ o de um bebê moderno. Observe agora não o bebê primitivo, mas lobo-cão q come os restos de comida jogados pelo eficiente caçador primitivo. Esse animal é relativamente “muito parecido” c/ o cachorro moderno. Mas veja o q resultou após milênios de vida em comum c/ os humanos, os mesmos milênios q separam aquele bebê deste: centenas de raças de cães diferentes c/ características as mais variadas, cães agressivos, cães inteligentes, dóceis, burros, brincalhões, peludos, pelados, &c you get my point. ¿Vc acha mesmo q o ser humano é assim tão bem acabado como p/ não evoluir mais após ter chegado a um patamar q lhe permite domesticar cães?

Mas voltemos à origem dessa discussão. Veja o resumo do seu primeiro argumento: estamos a toda hora lidando com questões morais, éticas, estéticas e lógicas; a maneira mais segura de se dar bem no dia-a-dia é adotar uma ideologia pré-existente q resolva essas questões; a decisão de adotar uma ou outra ideologia é afetada por considerações profundamente inconscientes; a ideologia adotada pode ser apenas uma cópia de outra baseada em premissas falsas e/ou incoerentes, mas como muitas vezes tomamos decisões que afetam outras pessoas sem estarmos preparados para tal, podemos afetar tragicamente a vida de outros e a nossa; para evitar isso, é aconselhável ter um raciocínio treinado e uma visão filosófica apurada.

Se esse é um resumo correto do q vc disse, concordo em gênero, número e grau.

O “detalhe conceitual” q considerei “discrepante” é dar a entender q se Fulano analisasse bem o q diz ("vc está sendo muito subjetivo", "esta casa é mais bonita que a outra", &c), talvez se visse obrigado a repensar suas afirmações, pois já q sua ideologia é “algo profundamente inconsciente”, ele não percebe q pode estar se baseando em premissas falsas e/ou incoerentes ao dizer o q diz. A discrepância está em tomar uma frase como a expressão clara, concisa e completa de um pensamento, e então desmerecer o pensamento pq talvez, ou não, seja fruto de uma ideologia espúria e inconsistente.

A fala é uma fórmula p/ enviar mensagens altamente criptografadas a ouvintes q têm a senha p/ decifrá-las. Por exemplo, o uso da fórmula “vc está sendo muito subjetivo” por uma pessoa q vc está tentando convencer a fazer algo pode querer dizer qqer coisa (“explique-se melhor”, “desista”, “chega de papo e me agarra”) dependendo da situação. O fato é q, qqer q seja o significado do q é dito, não é necessário e é até indesejável q as frases sejam claras, concisas e completas. Não há tempo p/ ser preciso. O ouvinte preenche as lacunas e faz o melhor possível p/ entender a mensagem. Todas as asneiras e besteiras repetidas pelo mundo afora não são resultado de ideologias falhas, mas de lacunas mal preenchidas durante milênios. Se desde os primórdios da humanidade tivéssemos conseguido (sabido/tido tempo para) nos fazer entender exatamente e saco p/ entender os outros, talvez não houvesse agora nenhuma questão ideológica p/ discutir : tudo seriam fatos.

Grande parte das idéias q expressei aqui estão muitíssimo melhor expressas em dois livros do Stephen Pinker: The Language Instinct e How the Mind Works.

“A questão não é simplesmente entender o mundo, a questão é mudá-lo.” Qto a isso, só posso traduzir do inglês algo q escrevi em algum lugar: “Se na História do Universo houver um capítulo ou um parênteses falando da humanidade, nenhuma menção de nossas conquistas e obras merecerá nossa mais alta esperança tanto qto um simples ‘Eles conseguiram entender o mundo.’ ”

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