terça-feira, julho 30, 2002

Rigor mortis te salutant

João Luiz,
Esse texto está muito bom. Mas permita-me comentar dois detalhes conceituais q considero discrepantes.

(1)Acho q vc está subestimando o comum dos mortais. Em particular, acho q está sub-interpretando o q as pessoas dizem. O q as pessoas dizem é apenas um sub-produto do q estão pensando: um sub-produto resumido e desconstruído segundo costumes pessoais, locais e contemporâneos. O significado precisa ser reconstruído por quem ouve. Qto mais afinado estiver o ouvinte com os costumes pessoais, locais e contemporâneos do falante, tanto melhor interpretará suas palavras. Por exemplo, é um lugar comum entre moças brasileiras à procura de amor (leia-se "fêmeas humanas jovens, falantes do português, residentes no Brasil, disponíveis para acasalamentos c/ machos da mesma espécie"), é comum, dizia, q as moças expressem uma preferência por homens "sinceros". Ora, certamente um homem sincero é a ÚLTIMA coisa q querem, pois fogem dele como o diabo da cruz. Eu não saberia reconstruir c/ exatidão o q querem dizer c/ "homem sincero", mas deve ser algo como "homem jovem, c/ fortes atributos físicos, sexuais e culturais, q verdadeiramente prefira a mim em detrimento de todas as outras mulheres do universo, q não fira minha auto-estima, e cujos galanteios sejam coerentes e resistentes à intuição feminina". Na certa, essa é uma definição bastante resumida e simplista do significado completo de "homem sincero". Mas seria absurdo e desnecessário q tanto a moça qto seu ouvinte definissem essa expressão c/ rigor. Este seria mesmo uma "inconveniência": é suficiente q os dois compartilhem a mesma cultura.

Assim, p/ entender completamente qqer assertiva comum de cunho estético, filosófico ou whatnot, é preciso conhecer quem a faz. O fato de q as assertivas de muitas pessoas coincidam entre si é uma questão mais lingüística do q ideológica: não há palavras suficientes p/ q cada pessoa defina exatamente o q quer dizer. Às vezes nenhuma das palavras q conheço define o q sinto sobre algo num dado momento e me vejo dizendo coisas como "esse filme é muito hisbrérfil". Como vc pode ver, nem sempre me importo se me faço entender ou não. Mas normalmente, as pessoas não se importam é de sacrificar boa parte do q têm em mente ao adequar o q pensam a um vocabulário pré-existente, em favor da comunicação instantânea. Isso não é ideologia: qto mais um indivíduo se comunica c/ outros indivíduos, mais se dá conta da imprecisão das palavras, mais perífrases e advérbios usa e menos compreensão he takes for granted.

Veja por exemplo nóis aqui. Muitas vezes somos obrigados a usar uma segunda língua q temos em comum (em nosso caso o inglês) porque não há nada no português q expresse a idéia q temos em mente. ¿O q fazem os monolíngües em casos como esse? Se viram c/ o vocabulário q têm: sacrificam uma parte da idéia e bola pra frente. Além disso, se for p/ ser rigoroso, nem o bilingüismo basta: melhora um pouquinho, mas o bilingüe continua tendo idéias mudas. Isso, repito, nada tem a ver c/ ideologia — adquirida ou meticulosamente pessoal.

(2)Acho q vc exagerou no último parágrafo. O rigor filosófico deve ser antes de tudo um antídoto contra a irritação, e não uma conseqüência indesejável de seu uso — tal como o estrondo lancinante de um bate-estaca. Irrita-se quem enxerga c/ rigor filosófico incompleto, assim como irrita-se quem ouve c/ rigor gramatical incompleto. O ser humano não foi expressamente feito p/ ser reconfortante à própria mente humana, e as produções humanas são muito mais complexas do q a compreensão até de quem as produz. As veleidades contra a gramá e a filó são tanto mais irritantes qto mais incompletas forem a filó e a gramá. A questão aqui não é q cometem-se absurdos irritantes, mas q os supostos absurdos não estão incluídos no repertório de quem se irrita. Por isso, questiono a idéia de q qto mais filó se usa, mais se se irrita. Por exemplo, "se se irrita" seria visto por muitos como um erro irritante; mas esse erro é conseqüência direta de rigor no uso da gramática portuguesa: 'irritar-se' é um verbo reflexivo, usado aqui numa construção passiva: "qto mais gramática usamos, mais nos irritamos", portanto "qto mais gramática se usa, mais se se irrita". Se alguém usa "se se irrita" nesse sentido, não me irrito: apenas entendo.

Qdo a gramática prescreve, desconfie do gramático q a transformou num meio-de-vida. Os gramáticos prescritivos utilizam um tipo especial de 'rigor' p/ impor suas opiniões sobre os outros: qdo o uso do idioma lhes fere os ouvidos, invocam a lógica; qdo seus ouvidos se ressentem das conseqüências lógicas da gramática, invocam o uso. Isso não quer dizer q qto mais gramática houver, tanto mais difícil será satisfazer todas as regras. Pelo contrário, qto mais abrangente a gramática, menos coisas serão consideradas 'erros'. No entanto, seria ridículo tentar uma gramática perfeitamente completa de um idioma, pois ela deveria incluir absolutamente todas as frases já enunciadas nele, e nenhuma das frases ainda por enunciar. O q acontece no mundo real é q cada gramático utiliza o dialeto q lhe põe o feijão na mesa. O gramático inteligente e honesto sabe q existem outras 'gramáticas'. Mas tb sabe q o sucesso ou fracasso de seu dialeto depende não de sua lógica intrínseca mas de quão perto está do dialeto dos poderosos de antanho ("A language is a dialect with an army and a navy." AMeillet, tb atribuída a JFishman ou MWeinreich). Ou seja, q até mesmo o tal do 'rigor' pode ser uma gafe de dois cumes.

A irritação dos rigorosos ou é meio-de-vida ou é reação de jovem moralista (acho q posso falar assim c/ vc pois, conhecendo-o como conheço, sei q não é dos q se irritam c/ os absurdos alheios — a menos q dar risada deles seja sua maneira de expressar irritação). O rigor — uma ferramenta p/ facilitar o trabalho de quem pretende compreender algo — apenas limita a compreensão se usado p/ condenar ou eliminar, ao invés de p/ distinguir e discernir: qto mais se sabe, mais se aceita; qto mais se filosofa, mais se olha p/ o q há, e menos se procura pelo q deveria haver. Ou seja, não é filosofia aquilo q não é realista e abrangente.

Acho q em certo ponto de qqer ramo das ciências sociais chega-se a um patamar a partir do qual tudo passa a ser compreensível. Talvez seja como subir um morro e olhar p/ baixo e ver a paisagem como um mapa, e aí entender por que aquele rio de imbecilidades desemboca naquele lago de lucros, e como aquela floresta de idéias tortas vai subindo pelo sopé de uma montanha de modismos vazios q às vezes desabam em avalanches de corrupções; entender o q é q cada gota, cada fungo e cada folha, e cada fera está fazendo ali; e até talvez entender por que olhando do alto tudo parece tão bonito e calmo.