quinta-feira, agosto 08, 2002

João Luiz,
Vejo q seu enfoque sobre a palavra está circunscrito dentro dos limites da psicanálise. Da psicanálise francesa, ainda por cima. A maneira de pensar francesa, acho-a muito atida aos substantivos processuais – nomeação, simbolização, decodificação, &c. É muita coisação p/ minha cacholinha. Acho tb q é muito fácil se perder nesse emaranhado de definições-bumerangue – isto é, qdo algo é definido como algoutro q tb define o primeiro algo, resultando num raciocínio em q A implica em B q é igual a C q explica B q justifica A; é quase um jogo de cartas marcadas.

Primeiramente, um resumo comentado da sua teoria.

Ver ou testemunhar um Objeto ou Evento Previamente Desconhecido resulta numa configuração específica de neurônios q se associa ao OEPD; esta configuração é como um símbolo do OEPD; esse símbolo permite pensar no OEPD qdo este está ausente.

Até aqui, tudo bem. Mas aí vc diz q o símbolo tem q ser nomeado, e como a palavra é aquilo q nomeia o símbolo, segue-se q qqer símbolo sem nome é automaticamente nomeado como ‘algo’ (entre aspas, presumivelmente esclarecendo q se trata da palavra ‘algo’).

Sorry, mas isso é um disparate. Pode-se demonstrar sem sombra de dúvida, tanto em laboratório qto na experiência cotidiana, q as imagens mentais (os “símbolos” mentais, as configurações específicas de neurônios) não precisam de nenhum suporte vocabular p/ serem manipuladas. Isso apesar do fato, tb demonstrável, de q muitas imagens mentais se originam de palavras. P.ex., nunca houve um justiceiro em minha experiência; mas ao ouvir a Palavra Previamente Desconhecida ‘justiceiro’, entendi o q significava pq visualizei a seqüência “justo >justiça >justiceiro”; mas mesmo assim, p/ pensar num justiceiro tenho q trazê-lo à mente como um indivíduo qqer qualificado não pela seqüência semântica, mas pelo q ele actually faz; ou seja, p/ manipular a idéia de ‘justiceiro’, crio na cabeça não uma definição da PPD mas uma cena totalmente visual na qual um ser humano mental-visual aniquila mental-visualmente um inimigo mental-visual. Nenhuma palavra se intromete. Nunca, jamais, a palavra ‘algo’ ou qqer palavra ou descrição análoga aparece na minha imaginação.

É até possível q uma pessoa, em contraste à minha experiência, aprenda a PPD ‘justiceiro’ antes de aprender ‘justiça’ e ‘justo’. Neste caso, no entanto, a palavra ‘justiceiro’ se associa diretamente à imagem mental de um justiceiro concreto ou descrito; assim como a palavra ‘criança’ se associa diretamente à imagem mental de uma criança, mesmo pq ‘criança’ perdeu todo o vínculo q originalmente teve c/ ‘criar’. Ou seja, o fato de q muitas imagens mentais se originem de palavras de modo algum corrobora sua teoria: muito pelo contrário.

Depois de ter dito q “o símbolo permite pensar”, vc diz q “pensar é criar símbolos”. Isso é como dizer q “a caneta permite escrever” e em seguida q “escrever é fazer canetas”. Sem dúvida, pensar implica em manipular imagens mentais/conexões neurológicas. Mas apesar de q qto mais se escreve, mais canetas se fazem, e qto mais se pensa, mais imagens mentais/conexões neurológicas se criam na mente, pensar não equivale a criar símbolos.

Ao falar, eu, como todo ser humano, sou interrompido por mim mesmo qdo me esqueço de uma palavra q ‘está na ponta da língua’. Eu sei o q quero dizer, estou pensando na coisa, poderia até descrever o q quero, mas aquela palavra q expressa exatamente o q estou pensando, não me vem à mente. Hm. Preciso dizer mais?

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A palavra "Napoleão" é uma concepção em nossas mentes, e portanto, um símbolo. A palavra “Napoleão” não está presente em nossa experiência passada (...), pois não o conhecemos pessoalmente.

À primeira vista isso parece correto. Mas se vc escarafunchar um pouco mais fundo, vai ver q é uma generalização muito imprecisa. Primeiro, vc só interpreta um símbolo se souber q ele é um símbolo; segundo, um símbolo só pode simbolizar algo se houver uma experiência anterior q substancie a fórmula “símbolo indica objeto”; terceiro, o símbolo só tem validade se houver uma experiência anterior do objeto simbolizado ou de um objeto análogo.

Entender q o símbolo “Napoleão” se refere a uma pessoa q viveu ou vive ou ainda está por nascer, depende de uma infinidade de ‘sub-tarefas’ q nada tem a ver c/ o uso de palavras. P.ex, (1) vc precisa saber q existe um tipo de ente no mundo real, um ente a q chamamos de ‘pessoa’; (2) precisa saber q no mundo há várias pessoas; (3) q cada uma dessas pessoas é individual e diferente das outras; (4) q as diferenças individuais são detectáveis por algum dos cinco sentidos; (5) precisa ser capaz de reter a imagem ou a idéia de qqer indivíduo na mente; (6) ser capaz de distinguir as várias imagens mentais dos vários indivíduos; (7) de associar indissoluvelmente cada indivíduo à uma imagem específica na mente; (8) precisa saber q o momento presente não é o mesmo q um momento passado e/ou q um momento futuro, &c &c

Sobre as sub-tarefas acima, é preciso notar q: (a) absolutamente todas elas (e uma miríade de outras) estão incluídas naquilo q comumente se chama de ‘pensar’; (b) cada uma delas é realizada por um circuito específico do cérebro, de modo q uma lesão num determinado local do cérebro incapacita o indivíduo de realizar a sub-tarefa correspondente (p.ex., há pessoas incapazes de detectar diferenças entre as indivíduos, outras incapazes de perceber o passar do tempo, &c); (c) nenhuma dessas sub-tarefas é peculiar aos seres humanos; (d) portanto, os outros animais tb realizam uma atividade cerebral q se pode chamar de ‘pensar’.

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Ainda não me convenci que animais consigam entender sinais que indiquem situações passadas. (...) Não acredito que um animal possa reter a imagem de uma presa em sua mente

Vários experimentos demonstram q os processos mentais humanos são apenas especializações dos processos mentais daqueles q chamamos de “animais” (ou seja, todo ser vivo não-vegetal não-humano). Lembro de dois experimentos: (1) num deles provou-se q os chimpanzés são capazes de identificar as causas de uma condição presente. Se vc lhes mostra uma folha de papel rabiscada e uma em branco, os Chicranos vão buscar um lápis; se vc lhes mostra uma maçã cortada pela metade e uma maçã inteira, eles vão buscar uma faca. Ou seja, os Chicranos não só são capazes de identificar causas e efeitos, como tb o são de reter pensamentos independentes. O fato de q não se saiba mais sobre os pensamentos deles não é indicação de q há pouco a saber, mas sim de q ainda não se sabe o q há p/ saber nem como chegar lá. (2) Há um documentário sobre “the most intelligent bird in England”, q relata uma série de experimentos c/ pássaros de várias espécies tentando obter alimento de uma série de aparelhos cada vez mais complexos. É ver p/ crer. Os pássaros de algumas espécies não só se lembram de coisas aprendidas no passado, como tb se mostram intrigados qdo o q aprenderam não dá mais certo, e além disso raciocinam novas estratégias baseadas em observações e lembranças remotas.

É difícil aceitar a presunção humana acima dos outros animais, uma presunção totalmente deslocada. Como é possível, p.ex. (e repito suas palavras), um animal não “reter a imagem de uma presa em sua mente” se “quando ele vê a presa na sua frente, uma conexão de neurônios se dá” e “uma experiência passada se liga à imagem real da presa”? O q é isso senão exatamente o q os cérebros humanos fazem – reter um símbolo "fora do tempo"?

Tenho duas anedotas c/ cães de qdo eu era criança. (1) Certa vez, meus irmãos trouxeram uma filhotinha linda q acharam perto de casa. Minha mãe se apaixonou por ela e decidiu mantê-la. Só q a cadelinha era meio sorumbática, não bebia muito seu leite, &c. Um dia uma mulher viu a cadelinha no jardim e tocou a campainha, dizendo q aquela era a filhotinha de uma cadela sua. Minha mãe pediu provas. No dia seguinte a mulher veio c/ uma cadela adulta c/ as tetas cheias. Na entrada de casa havia uma escada c/ uns vinte degraus. Minha mãe trouxe a filhotinha até o topo da escada, e aquela pelota de pelos não precisou mais q ver a mãe lá embaixo em frente ao portão fechado. Desceu a escada como um rojão, passou por uma frestinha no portão, e mãe e filha puseram-se a pular e lamber-se. Não havia mais ‘prova’ do q aquilo. Às lágrimas, minha mãe e a mulher só se entreolhavam, sorrindo. Só é possível explicar a experiência da filhotinha c/ palavras como ‘saudade’, ‘reconhecer’, ‘felicidade’, ou descrições análogas. (2) Nossa vizinha tinha um casal de cachorros, Duque e Diana. Uma vez ‘adotamos’ um cachorro de rua a q chamamos de Maciota. Ele brigava c/ o Duque (q era um chato de galocha) e paquerava a Diana. C/ o passar dos meses, meu pai se indispôs c/ o Maciota e decidiu levá-lo longe. Colocou-o no porta-malas do carro, dirigiu uns 10 km e deixou o Maciota p/ trás. Dois dias depois, ele estava de volta. Meu pai, impressionado, decidiu dar-lhe uma chance, se nos dispuséssemos a lavá-lo e mantê-lo fora de casa. Algum tempo depois, vendo q ninguém cuidava muito bem dele, meu pai colocou-o de volta no porta-malas do carro, saiu de manhã e só voltou à tarde. Não sei onde ele foi, mas deve ter ido bem longe. Duas semanas depois (ou foram três meses?; só sei q foi um tempão), lá estava o Maciota de volta. Na terceira vez, meu pai o levou embora, e voltou poucas horas depois, c/ a cara amarrada. O Maciota nunca mais voltou. É claro q o nosso cachorro não tinha ‘saudade’ da Diana, ou mesmo de nós, e q só voltava pq tinha um prato de polenta fria de vez em qdo e um lugar p/ dormir. Mas qdo voltava, dava p/ ver q ele estava sorrindo. Vc disse q “pensar é isolar ‘algo’ em sua mente e visualizar esse ‘algo’ fora do tempo”. Preciso dizer mais?

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Agora vamos ao q parece q vc imagina qdo usa a palavra ‘primitivo’. Vc vê o homem ‘primitivo’ pintando touros em cavernas, e esses “símbolos” mais tarde “transformando-se” em “palavras”. Depois, qdo fala de bebês ‘primitivos’, vc não fala de palavras, mas de cultura [“Um bebê primitivo (com um cérebro capaz de pensar como qualquer Homo sapiens) já tinha todas as “ferramentas” físicas para adquirir qualquer cultura.”]. Esta e outras frases do mesmo parágrafo, qdo postas lado a lado c/ suas declarações sobre o homem ‘primitivo’ e suas pinturas, me dão a impressão de q, p/ vc, “homem primitivo” denota um ser humano fisicamente como nós, porém ainda por descobrir a fala e talvez o pensamento, a ideologia e a cultura. Por favor me diga se estou certo ou errado nessa impressão.

Mas antes, p/ evitar mal-entendidos, vamos à cronologia aproximada mais aceita:

O Australopithecus surgiu 55 milhões de anos atrás.
O Homo habilis surgiu 2 milhões de anos atrás.
O Homo erectus surgiu 1,8 milhões de anos atrás.
O homem de Neanderthal surgiu 200 mil anos atrás, e desapareceu sem descendência 30 mil anos atrás.
O Homo sapiens surgiu 100 mil anos atrás, e deu no q deu.
As pinturas nas cavernas de Lascaux foram feitas 17 mil anos atrás.

O q eu quero dizer c/ “homem primitivo” é algo assim como o Homo erectus, o pré-homem.

Mesmo q se insista q a cultura e a ideologia tal como as conhecemos hoje só surgiram c/ o Homo sapiens, é muita presunção narcisista do homem civilizado moderno achar q só nossos antepassados mais parecidos conosco eram capazes de ‘pensar’, assim como tb é presunçoso achar q, p.ex., o Homo erectus – q já utilizava o fogo como ferramenta – não comunicava essa tecnologia usando palavras, ainda q c/ uma gramática elementar. O fato de q existe uma distância enorme entre nós e os outros animais não quer dizer q não haja existido uma evolução gradualíssima entre o Australopithecus e nós. Nem q nós sejamos a única espécie q desenvolveu a fala: o ‘nicho cognitivo’ (o nicho ecológico q privilegia não a velocidade, o tamanho, a força, &c e sim a cognição, ou seja, a retenção e transmissão de informações sobre o ambiente) certamente não foi uma descoberta dos primeiros Homo sapiens. Ainda por cima, como se vê na cronologia, esse nicho foi compartilhado c/ os Neanderthals durante pelo menos 70 mil anos. O Homo sapiens – c/ sua gramática mental especificamente humana – não é mais q um dos bichos q resultaram de uma evolução de dezenas de milhões de anos, um bicho q dizimou todos os outros bichos contemporâneos do mesmo nicho cognitivo.

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Qdo vc fala de ideologia, parece q fala de duas coisas ao mesmo tempo. O q vejo são dois assuntos diferentes costurados c/ um jargão comum aos dois. As duas coisas são: (1) a origem da fala no ser humano, e (2) os desdobramentos culturais da fala. Uma coisa é a origem da palavra ‘verde’ na fala humana, a partir de um grunhido vagamente gramatical possivelmente designando primeiramente um objeto de cor verde, até chegar ao q é hoje numa das milhares de línguas existentes. Outra coisa é o significado q um determinado grupo ou indivíduo empresta à palavra ‘verde’, um significado obviamente derivado do sentido original, porém imbuído de significados locais e/ou temporais. As motivações, mecanismos e interesses da(s) ideologia(s) não têm qqer relação c/ as mot., mec. e int. da fala, desconsiderando-se a óbvia motivação de preservar o indivíduo q as têm. Mas isso é assunto p/ outro simpósio.

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