sábado, novembro 30, 2002

João Luiz,
ALI ENYA SANG
De fato, é difícil levar a sério alguém cujo glossário de julgamentos inclua a palavra ‘alienado’. Se algum fulano me diz ou insinua algo parecido sobre mim, ou seja, q não tenho ‘consciência dos problemas políticos e sociais’, mal consigo me refrear de dizer, “mesmo q isso fosse verdade (o q não é), e daí? Qual é o problema? Por acaso as questões políticas e sociais (ou econômicas, ou espirituais, &c) são o único assunto q possa me interessar?” A ironia é q a pessoa q acusa outra de ignorância e alienação ignora, ela mesma, a vastíssima variedade de seres humanos e a descomunal complexidade q nos mantém juntos. Supostamente, o não-alienado se crê mais ‘consciente’ de algum aspecto da vida, o mais das vezes baseando-se em alguma teoria. Mas toda teoria é criada (ou eufemisticamente ‘descoberta’) por alguém q necessariamente exclui algo de sua análise, quer consciente, quer inconscientemente. A parte mais interessante de uma teoria não é o q analisa, mas o q exclui da análise.

Arnold Wesker na peça Chicken Soup with Barley, coloca estas palavras na boca de uma crítica do marxismo: “How can you possibly imagine that your arms are long enough, for God’s sake? What audacity tells you you can harbour a billion people in a theory? What great, big, stupendous, egotistical audacity, tell me?” Suponho q a mesmíssima coisa possa ser dita a um globalizófilo militante, a um freudiano radical, a um espírita catequizador, a um fanático por música new age, ou a um moralista de qqer escola.

Contrariamente à opinião comum de hoje em dia, eu acho q ninguém deve arvorar-se a tarefa de “conscientizar” as pessoas, exceto talvez em questões de saúde pública. Cada um tem sua própria consciência, e apesar de q é sempre bom conversar e discutir novas idéias, em geral estamos todos muito bem do jeito q estamos. Se, sei lá, um gênio absoluto da matemática achasse q todos viveriam ‘melhor’ se soubessem todas as fórmulas matemáticas, e quisesse nos ‘conscientizar’ disso, seria inútil e até ofensivo. Assim como seria inútil e ofensivo um biólogo tentar ‘conscientizar’ uma zebra sobre seu mau hálito ou seu lugar na cadeia alimentar. Inútil porque a zebra está bem do jeito q está, muito obrigado. Ofensivo porque ao tentar conscientizar a zebra, o biólogo esquece q ela também está consciente de milhares de coisas q o biólogo, por mais q estude, nunca perceberá: cheiros, sons, gostos, sua visão do mundo, &c.

Antigamente, eu considerava um insulto q me chamassem de alienado ou algo semelhante – como se me acusassem de passar o tempo olhando p/ o teto e nada do q eu pudesse dizer fizesse o menor sentido. Hoje já não. Eu fico achando q a acusação vem de alguém q only wants to be loved, q gostaria q todos os seres do planeta vivessem em harmonia, compartilhando os mesmos ideais – em suma, de um narcisista ressentido. Só um narcisista pode achar q um ideal absurdo desse quilate seja possível.

Outrossim, a Bel notou q línguas diferentes dão significados diferentes p/ ‘alienação’. De fato, em português, ‘alienar-se’ adquiriu quase o sentido de ‘ilhar-se’, ou seja, intencionalmente desvincular-se de algo. Em inglês, ‘alienate’ é algo q se faz a outra pessoa (Many artists feel alienated from society.). Pelos exemplos de Hegel e Feuerbach, vê-se q em alemão ‘alienação’ tem a ver c/ a percepção das coisas externas ao indivíduo. Acho q La Boétie não deve ter usado a palavra ‘alienação’ no século XVI. O sentido q ‘alienado’ adquiriu no Brasil de hoje deve ter seguido o caminho ‘pessoa distante do burburinho político’ — ‘pessoa q não tem acesso a informações políticas’ — ‘pessoa q intencionalmente ignora questões políticas e sociais’ — ‘pessoa desprovida de percepção política e social’. Um longo caminho, não? Tão longo qto o caminho percorrido no Brasil pela palavra ‘cínico’ — de ‘filósofo questionador’ a ‘hipócrita petulante’.

FALANDO EM TER NET
É interessante o q vc diz sobre a internet. Às três razões por que ela não sofre controles mais rígidos, eu adicionaria uma: a aparência anárquica da internet leva os usuários a expor particularidades individuais q de outro modo permaneceriam ocultas, não tanto pelo q eles de fato dizem (todo mundo sabe q a internet é o paraíso da dissimulação), mas pelos sites q visitam. O fato de não haver controle não exclui a possibilidade de haver monitoração. Hoje em dia, o registro de sites visitados é tomado nos tribunais como evidência de predisposição. Chegará o dia em q o registro das visitas feitas por um indivíduo terá o mesmo peso incriminador q sua impressão digital. Nessa visão, qto mais anarquia, melhor.

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